Edna Maria

 

"À Flor da Pele."



Textos


Quando Eu Nasci, Minha Avó Virou Ancestral

No dia em que abri os olhos pro mundo,

ela fechou os dela —

não como quem parte,

mas como quem passa a tocha.

 

Minha avó era mulher de pele marcada e olhar firme.

Filha de uma escrava liberta pela Lei do Ventre Livre,

mas nunca verdadeiramente livre.

Porque a liberdade na lei não limpa o chicote na memória,

nem apaga o silêncio imposto nas cozinhas, nas senzalas, nas salas de patroa.

 

Ela carregava a Bahia no passo,

o ferro da luta nas mãos,

e o axé no coração cansado.

 

E justo quando eu nasci —

ela partiu.

Fez da minha chegada um ritual de revezamento.

Saiu da vida e entrou em mim.

 

Carrego no sangue a força que ela não gritou,

as dores que ela calou,

os sonhos que ela não teve tempo de sonhar.

Minha primeira respiração foi o último sopro dela,

e talvez seja por isso que

respiro por duas.

 

Ela virou raiz,

eu brotei galho.

Ela se fez chão,

eu virei caminho.

 

Não chorei sua morte,

porque ela virou minha origem.

E desde então, cada palavra que escrevo,

cada causa que abraço,

cada afeto que semeio—

é ela, reencarnada no meu verbo.

Edna Maria
Enviado por Edna Maria em 18/05/2025
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