Edna Maria

 

"À Flor da Pele."



Textos

“A humanidade falhou em existir”
Estava voltando para casa no ônibus, depois de um dia cansativo — daqueles em que o corpo pesa, mas a alma ainda carrega um sentimento leve de dever cumprido. A BR-324, como sempre, engarrafada, cinza, indiferente ao mundo ao redor.

Foi então que vi.

Um Ford vermelho, desses que se confundem no meio do trânsito, capotou. Não uma, mas várias vezes. Atravessou a pista como se buscasse socorro em desespero. Dentro, três pessoas. Corpos jogados, estilhaços, o caos.

O que veio depois não foi sirene.
Foi notificação.

Os celulares começaram a vibrar. Flashes mais fortes que os faróis. Gente em pé dentro do ônibus tentando captar o melhor ângulo. Stories ao vivo, legenda com emoji de espanto, trilha sonora dramática.

Mas ninguém ligou para o SAMU.
Ninguém correu para ajudar.
Ninguém sequer gritou.

Era como se a tragédia tivesse virado espetáculo.
E as vítimas, figurantes mudos.

Eu liguei.
Disquei 192, me identifiquei, informei o local e o estado das vítimas. A atendente agradeceu. O ônibus seguiu.

Cheguei em casa ainda com o coração acelerado.
Minutos depois, o telefone tocou.

Para minha surpresa, era um canal de televisão.
Não queriam saber se os feridos estavam bem.
Não perguntaram sobre o socorro.
Queriam saber se eu tinha vídeo.
Se eu tinha foto.
Se eu poderia mandar por WhatsApp.

A humanidade falhou em existir.
E transformou a dor… em conteúdo.
Edna Maria
Enviado por Edna Maria em 08/06/2025
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